Inteligência Artificial ou Artifício da Inteligência?

Deus é a própria Inteligência, e à medida que as coisas se ordenam conforme a natureza estabelecida por Ele, ou seja, segundo Sua Divina Vontade, elas adquirem inteligência. Esta inteligência é a forma de ser própria à sua individualidade, ou dito de outra forma, a maneira como a essência governa seu ente singular. O homem, criado à imagem e semelhança de Deus, participa da inteligência divina de maneira especial. Um dos aspectos dessa inteligência é a capacidade de criação, ou mais precisamente, a elaboração a partir do que já existe. Dante refere-se ao resultado dessa ação como “netas de Deus”. Assim como Deus, ao criar do nada, confere algo de Sua Inteligência às coisas criadas, o homem, dentro de suas devidas proporções, também imprime sua inteligência em suas criações. Quando Deus terminou a criação, viu que tudo era bom. Será que o homem pode dizer o mesmo de suas criações? É certo que toda criação reflete, de algum modo, a inteligência de seu criador. A criatura é um reflexo de Deus, e a criação humana é um reflexo do próprio homem.
I.A. e a Antropologia
Para compreender bem a questão da Inteligência Artificial (I.A.), precisamos entender seu autor: o homem, sua inteligência, como esta habita nele e como ele a utiliza para moldar a natureza ao seu redor.
Antes do Pecado Original, o homem era perfeito; seus sentidos captavam a Realidade de forma perfeita e seu entendimento era agudo. O ser humano personificava a Inteligência Divina em sua natureza. Após o Pecado, o único homem a personificar essa Imagem Original foi Cristo, o “novo Adão”, melhor dizendo, o Verdadeiro Adão.
O homem desobedeceu a Deus e ficou sujeito ao trabalho, pois a natureza passou a desobedecê-lo. Deus não tirou sua inteligência, apesar de ele ter perdido a ciência infusa. Com o tempo, o homem percebeu que para dominar a natureza precisava ser mais eficiente, ou seja, usar menos os braços e mais a inteligência. Esse desejo reflete a aspiração do Paraíso perdido. A ciência infusa dá ao homem o domínio das coisas, pois ele compreende as coisas desde sua essência. O conhecimento confere a autoridade, ou seja, a “obediência-livre” e não a coerção que é a obediência mediante o uso da força. Perdida a ciência, ele precisa reconquistá-la com árduos esforços que nem sempre são bem sucedidos. O domínio da natureza se dá, depois do pecado, pela força e não mais pela “autoridade natural”.
Dessa ideia nasce o conceito de técnica, ou seja, aprimorar o instrumento de trabalho. Mais tarde, a técnica evolui para tecnologia, pois é necessário estudar a natureza das coisas e entender como melhor combiná-las. Tecnologia é a soma das descobertas de nossos predecessores combinadas de maneira a melhorar nosso domínio sobre a natureza. Técnica é o modo de fazer, tecnologia são conhecimentos “descobertos”, acumulados e aplicados em algo ou em alguma área do saber para o domínio da natureza.
Chegamos à conclusão de que o homem possui algo da inteligência divina, mas devido ao pecado, sua aplicação é imperfeita. Portanto, este homem imperfeito ampliará sua ciência e a aplicará, combinando-a para ser mais eficiente para libertar-se de processos penosos, evoluindo, adquirindo ciência e domínio da Realidade e de si mesmo.
A Inteligência e a Utopia Ética
Nossa descrição anterior soa utópica, sugerindo que a humanidade alcançaria um estágio em que seria ciente de tudo e resolveria todos os problemas materiais. Contudo, isto é impossível por vários motivos. Primeiro, porque essa evolução pressupõe uma história linear com uma transmissão linear de cultura e inovação. Segundo, porque ainda não definimos o que é inteligência (exceto ao afirmar que ela é o próprio Deus).
Inteligência é “in-tus-legere”, ou seja, “ler dentro da coisa”, saber o ser das coisas. O ser é a ideia divina sobre uma criatura específica, e é pela participação na Inteligência Divina que o homem pode conhecer verdadeiramente a natureza das coisas. 
Deus, o homem e a máquina
Estudar, conhecer, fazer ciência é este modo singular de se relacionar com Deus. Saber é ser semelhante a Deus, por isso, só alguém com uma conduta elevada é capaz de alcançar os elevados saberes. À medida que o Intelecto Divino ilumina o intelecto humano, ele se torna mais consciente. O modo de ser iluminado é abstrair da realidade os rastros de inteligência que nela estão e que a regem. Quando o intelecto humano entra em contato com a inteligência das coisas, ele se encontra com Deus. Neste sentido, a verdadeira unidade da humanidade não está em nenhuma utopia, seja ela tecnológica ou de outro gênero, mas nos princípios universais de conhecimento e de conduta que são também princípios de nossa humanidade (constituintes de nossa própria natureza).
Retrato de Sombras de Kumi Yamashita
Invenções Humanas
Se for o autor do homem que o ilumina para que seu esforço não seja em vão, de modo análogo isso ocorre nas criações humanas. Sem o homem, suas obras não possuem o rastro de sua inteligência. Mozart pode ter morrido, mas sua música evoca sua presença, porque o que ilumina sua música quando tocada é a própria alma dele que, de algum modo, ilumina os acordes para soarem daquele modo. A imagem do próprio Mozart está ali quando sua música é tocada; por isso alguns especialistas em arte costumam afirmar que não existe arte, apenas artistas.
I.A. e a Crise da Inteligência
Quando se aborda a Inteligência Artificial, as posições geralmente se polarizam: de um lado, os defensores da inteligência analógica; do outro, os idealistas digitais. O medo de a criação superar o criador é constante. Talvez essa preocupação seja um exercício de empatia dos ateus para com Deus, ou seja, a realização de seus anseios de maneira diversa, talvez eles é que serão superados por suas criações…
De qualquer forma, a crise de um lado da inteligência humana e a glorificação da técnica do outro já é um paradoxo, pois, como explicado anteriormente, a criação depende de seu criador. Entretanto, há características que distinguem a criação do criador, como a imutabilidade e a mutabilidade. Se um é causa e o outro efeito, a relação de sustentação garante a integridade da criação. A inteligência menor depende da inteligência maior. Logo, conclui-se que a causa é imutável e estável, enquanto o efeito é mutável e instável.
A crise da inteligência surge porque o esforço está voltado para a construção de uma utopia hedonista, em vez de se relacionar com Deus através da ciência adquirida. Adão era feliz não porque vivia no paraíso, mas porque podia ver, querer e sentir o dedo de Deus, a Inteligência Divina nas coisas. [1]
A comodidade de uma criação pode tirar do homem o que talvez lhe seja mais precioso, que é a consciência de ser uma criatura de um Criador perfeito.
I.A. e as Preocupações Concretas de sua Aplicação
Com esse pano de fundo, podemos nos debruçar sobre os problemas práticos da I.A. 
A I.A. produzirá mudanças significativas em nossa concepção do que é ser humano, ampliando nosso entendimento de quem somos e de como nos relacionamos com a Realidade e, em última análise, com Deus.
O maior desafio ético é a pretensão de usar a criação para “superar a Deus” e construir um paraíso terreno. A experiência mostra que nesse caminho utópico e hedonista, os homens costumam vender sua liberdade por conforto. Os homens perdem-se em si mesmos.
Paraíso Terrestre e a Utopia Ideológica
Quanto a I.A. nos superar em inteligência, isso é impossível, pois ela depende de nossa inteligência para se aprimorar. Mesmo que as máquinas repassem informações entre si, elas são incapazes de criar como o homem, pois, apenas executam e processam dados (pelo menos por enquanto). A velocidade de processamento e execução pode ser superior à do homem, mas sem direção e juízo, esse poder de operação é inútil.
A questão central é: a que homem a criação se parece? O problema não está no efeito, mas na causa. Que fim o homem decidirá dar a esta ferramenta poderosa que criou? Será a criação de uma era histórica de progresso material colossal, poupando o homem de certas penas e proporcionando um desenvolvimento espiritual e cultural sem precedentes, ou nos levará a uma escravidão utópica-hedonista? Será o artifício um reflexo da Inteligência, ou a inteligência reduzida a um artifício? Será o homem um reflexo de Deus, ou Deus reduzido à imagem do homem? Esses questionamentos são um convite para aumentarmos nossa ciência e, de modo singular, conversarmos com Deus sobre a finalidade que Ele deseja ao iluminar nossa inteligência para produzir tais tecnologias.
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[1] A expressão “nas coisas” não está sendo utilizado com o sentido panteísta, mas no sentido católico conforme explicado no texto, a saber: Se o que o homem produz é conhecimento aplicado, logo o que Deus faz é a própria ciência (ela em si mesma); neste sentido há a Inteligência de Deus nas coisas, assim como há a inteligência do homem em suas criações.